da Terra e do Território no Império Português

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Cartografia portuguesa antiga

Os mapas são um importante instrumento de construção do território. No modo como representam o território revelam a natureza, e o grau, do seu conhecimento, mas sugerem igualmente uma declaração de poder sobre esse território, seja esse poder efectivo ou simplesmente reivindicado. Estes princípios assumiam ainda maior significado no contexto da exploração de novos territórios e da formação de impérios. Neste sentido, os mapas tiveram uma grande importância no quadro da expansão portuguesa, quer para registar os novos descobrimentos, quer para reivindicar a posse ou a ocupação de territórios, quer para manipular a informação acerca dos progressos daquela expansão ultramarina. Com efeito, a própria informação contida nos mapas era uma fonte de poder, sendo muitas vezes deliberadamente omitida, acrescentada ou distorcida.

A cartografia portuguesa tem uma longa tradição. Na sua fase inicial – aquela a que se refere este verbete – consistia principalmente em cartas náuticas, muitas das quais terão desaparecido com o tempo. Uma das mais antigas que se conhecem é a denominada “carta de Modena”, anónima, datável de c. 1471 (Modena, Biblioteca Estense, C.G.A.5c), a qual já indica alguma actividade comercial no local da futura fortaleza de São Jorge da Mina, onde surge uma bandeira portuguesa e a frase “a mina do ouro”. Também o mapa de Cantino de 1502 (Modena, Biblioteca Estense, C.G.A.2) – assim chamado porque foi Alberto Cantino quem o extraiu clandestinamente de Portugal e o vendeu ao Duque de Ferrara – inclui uma longa descrição daquela fortaleza, assim como uma série de padrões e de bandeiras portuguesas que assinalavam reivindicações territoriais e a presença dos seus exploradores ao longo das costas ocidental e oriental de África. Esse mapa incluía textos que identificavam os soberanos locais e as actividades de comércio dos portugueses. Na Ásia, só se vêem bandeiras portuguesas em Cambaia e em Calecute; os textos que as acompanham não fazem nenhuma afirmação de controlo político, devendo ser interpretadas apenas como indicação da presença de comerciantes portugueses. Na América do Sul, só se vêem bandeiras portuguesas no Cabo de São Jorge e junto a Porto Seguro, sendo esta última acompanhada de um longo texto que explica que a terra foi descoberta por Cabral enquanto navegava sob as ordens do rei de Portugal. Deve notar-se que, devido ao desaparecimento de muitos dos mapas portugueses, alguns importantes registos cartográficos do processo de exploração e conquista desenvolvido por Portugal só se encontram preservados em mapas feitos noutros países. Quando esses mapas representam as realizações portuguesas de forma diferente daquela que está nos mapas dos próprios, não sabemos se isso não resulta apenas de um processo de revisão feito pelos cartógrafos estrangeiros. Por exemplo, a carta de Nicolo de Caverio, de 1504 (BnF, Cartes et Plans, S. H., Arch. 1) mostra padrões com o brasão de Portugal nas costas ocidental e oriental de África, mas nem um único na Ásia. O certo é que, entre o final do século XV e o início do século XVII, Lisboa foi um importante centro de produção de mapas que mostravam os novos territórios “descobertos” pelos europeus. Os seus cartógrafos e as suas oficinas de produção de cartas náuticas e planisférios, nomeadamente as das famílias Reinel, Homem e Teixeira, tinham uma ampla reputação, procura e influência na Europa. É conhecida, por exemplo, a influência que tiveram na chamada “Escola de Cartografia de Dieppe”, que floresceu na Normandia entre as décadas de 1540 e 1560. [A: Chet Van Duzer, 2015]

Bibliografia: Alegria et al 2012; Cortesão 1969-70; Cortesão e Mota 1960; Feijão 1995; Harley 1988; Van Duzer 2015.

doi: 10.15847/cehc.edittip.2015v011

Tribunais de Relação

Ao longo da época moderna, o ultramar português contou com três tribunais de relação: Goa (1544), Bahia (planeado em 1588, implementado em 1609) e Rio de Janeiro (1751). Cada um deles dispunha de um distrito jurisdicional alargado. No caso de Goa, ele incluía todos os territórios do Estado da Índia. Para o Brasil, até à criação da Relação do Rio de Janeiro, o distrito judicial também incluía toda a América portuguesa. Os territórios da África ocidental, bem como os arquipélagos atlânticos, pertenciam à jurisdição da Casa da Suplicação (Lisboa), embora por diversas vezes tenha sido discutida a inclusão de Angola no distrito da Relação da Bahia. A relação de Goa antecedeu as congéneres brasileiras e serviu mesmo de modelo ao que viria a ser previsto e, depois, estabelecido, na Bahia. Inicialmente uma evolução e fixação da figura do Ouvidor-geral na Índia, as relações acabaram por ser moldadas pelas reformas administrativas de D. Filipe I. O regimento de 1581 para a Relação de Goa já previa um corpo de uma dezena de desembargadores, encarregues de julgar em última instância, de julgar apelos de instâncias inferiores e de julgar causas que envolvessem direitos e fazendas da coroa. Com a pressão demográfica e o crescimento económico do sul do Brasil, foi criada, em meados do século XVIII, a relação do Rio de Janeiro, dando resposta aos pedidos repetidos dos municípios da região das Minas. O seu distrito passou a incluir as capitanias a sul da do Espírito Santo. [A: Nuno Camarinhas, 2015]

Bibliografia: Camarinhas 2010; Schwarz 1979; Subtil 2010; Wehling 2004.

doi:10.15847/cehc.edittip.2015v010

Timor

A construção territorial do domínio português em Timor constituiu um processo atribulado, que só adquiriu verdadeiro significado a partir do século XIX, apesar de os portugueses terem tido os primeiros contactos com a ilha de Timor nos princípios do século XVI. Gorada a tentativa de fixação em Cupão, em 1646, pouco sabemos sobre a subsequente ocupação de Timor ocidental pelos larantuqueiros, mestiços luso-asiáticos originários das vizinhas ilhas de Solor e Flores. A sua organização dominial em aldeias de tipo tradicional, cujo perímetro em redor da casa senhorial, denominado kuan ou lopo, era defendido por peças de artilharia, foi transposta de Larantuca (Flores) para Timor. Estribados nas armas de fogo e na articulação com redes asiáticas e europeias de comércio de sândalo e escravos, envolveram-se militarmente e cruzaram-se pelo casamento com famílias reais da ilha, absorvendo diversos reinos timorenses menores, de entre as dezenas então existentes. Foi o caso, por exemplo, de Animata, no Oecússi, servido por Lifau, porto no reino de Ambeno, já frequentado por portugueses e luso-asiáticos de Larantuca e Macau. Estabelecidos em Díli desde 1769, os portugueses recearam ampliar o comércio de escravos e assim atrair intermediários europeus que poderiam fornecer armas de fogo aos nativos. Os cativos eram capturados em ações de pilhagem e nas disputas entre reinos vizinhos por ricas áreas fronteiriças, ainda que tais diferendos territoriais só se tenham tornado evidentes aos europeus quando ameaçaram o traçado da fronteira luso-holandesa acordada em 1859, a qual dividia a ilha ao meio entre as duas potências coloniais.

A proliferação de armas de fogo nos séculos XVIII e XIX equilibrou a relação entre as forças exógenas e os timorenses. A superioridade militar dos larantuqueiros desapareceu, acelerando a sua integração na sociedade local. Estes desenvolvimentos contribuíram para a degradação do sistema fiscal baseado na finta e correspondem a uma perda efetiva da influência política europeia, que os governadores Afonso de Castro (1859-1863) e António Joaquim Garcia (1869-1870) reconheceram. Excluindo Díli e alguns portos na costa norte, tal influência era nominal, baseando-se nos chamados “reinos aliados”, que forneciam à administração carregadores e trabalhadores. Apesar dos constrangimentos, nas décadas de 1870 e 1880 desenvolveu-se a cultura do café. Contudo, a situação de carência de mão-de-obra prevaleceu até à introdução do imposto de capitação em 1908, cuja cobrança mais do que duplicou a arrecadação da finta, compelindo a população a obter recursos pecuniários para pagá-lo. Com a ocupação militar do território, sob a égide do governador Celestino da Silva (1894-1908), o velho relacionamento entre o poder colonial e os chefes vassalos cedeu à imposição de uma administração indireta caracterizada por chefes indígenas escolhidos ou sancionados pelos europeus.

Uma nova economia exportadora de café emergiu da multiplicação de pequenas explorações familiares indígenas. A cultura do café ocupou o centro das atenções, procurando a administração colonial impulsioná-la mediante a afetação das melhores terras agrícolas e de contingentes de mão-de-obra forçada. Mesclando o interesse público com os seus interesses privados, o governador Silva, fundador e principal acionista da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho (SAPT), obteve o melhor quinhão em terras. Apesar das extensas concessões, acompanhadas de medidas para atrair investidores, os resultados alcançados pelas cinco companhias agrícolas vocacionadas para o mercado exportador ficariam aquém das expectativas. Os defensores do governador Silva reclamaram que apenas em 1895 teria começado a ser imposto aos nativos um regime de propriedade colonial. Em 1910, já 6000 hectares de terras agrícolas estariam afetos ao cultivo do café, repartidos por uma dúzia de reinos, enquanto o cacau e a borracha ocupavam uma extensão muito menor. No entanto, as receitas da exportação de café caíram no início do seu consulado, devido à conjunção das campanhas militares, da queda dos preços no mercado internacional e da ferrugem do cafeeiro. As 2500 toneladas de café produzidas em 1880, provenientes quase exclusivamente de pequenas explorações familiares, reduziram-se a um terço em 1906, quando as grandes plantações dos capitalistas europeus já estariam supostamente em pleno funcionamento. O certo é que as plantações dispersas pelos comandos militares de Liquiçá, Motael, Hato-Lia e Lamaquitos, apresentavam-se descuidadas, verdadeiros “matagais”, cuja renovação dependia dos viveiros estatais, havendo mais de 20.000 cafeeiros plantados em solo pedregoso e impróprio. Tal situação devia-se a que as plantações eram compostas por parcelas expropriadas a produtores timorenses. A situação deplorável das plantações dirigidas pelos europeus acabava por não diferir substancialmente das pequenas explorações familiares, exceto no regime laboral a que os cultivadores estavam sujeitos, pois em ambos os tipos de exploração se encontravam os mesmos cafeeiros envelhecidos. Assim se explica também a diferença entre as quantidades de café produzidas e as efetivamente exportadas, já que mais de 40% da produção não satisfazia os requisitos do mercado internacional.

As autoridades coloniais legitimaram o sistema de concessão de terras aos europeus argumentando que o solo era tradicionalmente possuído pela comunidade aldeã e, portanto, tinha justificadamente transitado para o estado colonial, especialmente nos reinos que haviam oferecido maior resistência. Esta interpretação da agricultura de queimada, que obrigava o camponês a escolher novo terreno a cada dois ou três anos, obedecia a uma visão tendenciosa da vida comunitária, que não correspondia à exploração tradicional das várzeas orizícolas e dos cafezais nem ao facto de o acesso à terra estar vedado a prisioneiros de guerra e outros escravos, proibição revogada com a integração numa família adotiva. Para evitar abusos e atropelos aos direitos dos nativos, as concessões estavam regulamentadas, cabendo ao governador a aprovação da transposição da propriedade para os colonos europeus. Tal legislação foi aprimorada entre 1906 e 1908, quando se fizeram ouvir acusações contra o governador. A falta de proteção estatal, capitais, técnicos e mão-de-obra, apresentava-se como a maior ameaça ao desenvolvimento da economia de plantação. Nas principais plantações da SAPT, a imposição de um sistema de feitoria, que providenciava bens essenciais aos trabalhadores através de uma conta corrente, transformou muitos deles em insolventes e recriou as condições de dependência dos escravos (lutuum) usuais na sociedade tradicional, à qual haviam sido arrancados como prisioneiros de guerra ou, mais frequentemente, incluídos em contingentes de mão-de-obra fornecidos pelos próprios liurai, os “régulos” timorenses. [A: Manuel Lobato, 2015]

Bibliografia: Boxer 1990; Clarence-Smith 1992; Dores 1901; Hagerdal 2012; Pélissier 2007; Santos 1913; Silva 1910.

doi:10.15847/cehc.edittip.2015v009

Juiz de Fora

Juiz letrado, nomeado pela coroa ou por um dos seus donatários, exercendo jurisdição a nível concelhio. A sua origem remonta ao séc. XIV e a sua nomeação era extraordinária, com o objetivo de dar resposta a conflitos locais, dificilmente resolúveis pelos juízes do concelho. O número de concelhos para onde a coroa nomeava juízes de fora teve um crescimento grande ao longo do séc. XV e este movimento foi a par com uma tendência para a nomeação regular, por triénios, destes magistrados, a quem se começou a exigir formação em direito. As suas funções eram principalmente de natureza judicial, com alçada criminal e civil fixada pelas Ordenações. Exerciam igualmente funções administrativas, fiscais e, inclusivamente, governativas, uma vez que tinham assento na mesa de vereação das câmaras. A coroa começou a nomear juízes de fora ultramarinos nos Açores e na Madeira, no início do séc. XVII, alargando-os, no final desse século, ao Brasil e Angola. [A: Nuno Camarinhas, 2015]

Bibliografia: Camarinhas 2010; Hespanha 1982; Hespanha 1994.

doi:10.15847/cehc.edittip.2015v008

Juiz de Vintena

Era o oficial de justiça das jurisdições mais reduzidas do reino e do seu ultramar. Pertencia ao universo da justiça não-letrada, isto é, não se requeria que tivesse formação em direito, nem integrava o aparelho de administração judicial da coroa. Exercia a sua jurisdição sobre pequenos territórios, arraiais e aldeias, com mais de vinte fogos (“vintena”) e que distassem pelo menos uma légua da sede do concelho. Era eleito pelas câmaras municipais e julgava, regra geral apenas verbalmente, causas cíveis de pequeno valor, podendo a sua alçada oscilar entre os 100 e os 400 réis. As matérias crimes eram da competência do juiz ordinário do concelho, para quem o juiz de vintena deveria encaminhar as respetivas inquirições. Uma vez que a malha de concelhos coberta pela jurisdição da coroa era reduzida, e em muitas regiões ultramarinas incipiente, o juiz de vintena, à semelhança do juiz ordinário, encarnava a imagem da justiça no quotidiano desses territórios. [A: Nuno Camarinhas, 2015]

Bibliografia: Hespanha 1982; Hespanha 1994.

doi:10.15847/cehc.edittip.2015v007

Cabo Verde

Cabo Verde incorporou o império português entre 1460, data do seu descobrimento, e a sua independência como nação soberana em 1975. A tarefa de povoar o arquipélago não se processou em simultâneo, prolongando-se a sua territorialização por quatro séculos, ao longo de três vagas sucessivas. A primeira vaga ocorreu desde o último terço do século XV, no sotavento insular, e teve por móbil os privilégios de exclusivo comercial concedidos aos moradores de Santiago na costa guineense em 1466. Em 1472 estes privilégios foram limitados aos produtos criados na ilha de Santiago, o que fez acelerar o processo de povoamento desta ilha e da sua vizinha, a ilha do Fogo, com o fim de gerar produtos comercializáveis na costa africana, como algodão em espécie ou em panos. Só então se acelerou a concessão de sesmarias e a exploração agrícola e pecuária nestas duas ilhas, tanto quanto isso era possível em espaços com um clima saheliano insular. Durante o século XVI, a apropriação territorial do arquipélago de Cabo Verde ainda se restringia essencialmente àquele núcleo primitivo, com uma ocupação residual de outras ilhas, como S. Nicolau e Santo Antão, e uma ocupação sazonal de outras, como a Boavista para a criação de gado, ou as do Maio e Sal para recolha do produto com o mesmo nome. O segundo ciclo de povoamento, mais lento, teve início entre finais do século XVI e meados do XVII. Com a crise comercial ditada pela chegada dos concorrentes norte-europeus aos Rios de Guiné, os mercadores de Santiago concentraram-se mais no frágil sector agro-pecuário, limitando-se agora ao comércio miúdo de abastecimento e refresco aos navios estrangeiros que demandavam a ilha capital do arquipélago. Entretanto, os ciclos de fomes e secas, que se tornaram cada vez mais recorrentes ao longo dos séculos XVII e XVIII, conduziram à desestruturação do sistema escravocrata em Santiago e Fogo. Uma fatia significativa dos escravos foi alforriada, vendo-se na contingência de partir para outras ilhas em busca de terra e sustento, uma vez que nas ilhas do povoamento inicial muitas das propriedades mais férteis se encontravam vinculadas em morgadios e capelas, constituídas por fazendas de média e grande dimensão, em contraponto com a propriedade dos forros que se circunscrevia a pequenas explorações familiares. O censo de 1732 espelhou esta realidade, verificando-se que os escravos apenas alcançavam cerca de 10% da população na ilha do Fogo, ante uma larga maioria de mestiços e forros; os brancos europeus representavam apenas 2% do total. Assistiu-se então a um maior peso das ilhas do Barlavento no conjunto da ocupação territorial insular, despontando progressivamente núcleos agrícolas nas ilhas montanhosas de S. Nicolau e Santo Antão e também em menor escala na ilha Brava. A população também cresceu nas ilhas salineiras da Boa Vista e Maio. Este ciclo de povoamento terminou em finais do século XVIII, quando, por via do reformismo mariano, se pensou em colonizar a ilha de S. Vicente, até aí palco de residência de piratas e alvo de visitas periódicas dos habitantes das ilhas vizinhas em busca de urzela. A terceira e última vaga da territorialização cabo-verdiana deu-se à medida que a progressão da navegação a vapor atraiu mais moradores à ilha de S. Vicente, transformando o Porto Grande do Mindelo no principal porto transoceânico insular, a partir de meados do século XIX. [A: Maria João Soares, 2015]

Bibliografia: Baleno 1995; Carreira 1984; Silva 1995; Silva 2002; Teixeira e Torrão 2005.

doi:10.15847/cehc.edittip.2015v006

Soberania

Actualmente, entende-se como soberania a autoridade suprema e indivisível dentro de um território definido. A soberania é um atributo do estado ou, num sentido mais estrito, do chefe do estado, o soberano. De acordo com Bodin – o primeiro a teorizar explicitamente o conceito, em 1576 – o poder soberano era perpétuo, absoluto e superior a todo o direito positivo ou humano, porém não ao direito natural ou divino. Antes de Bodin, já Ulpiano e Maquiavel haviam defendido a autoridade suprema do governante, embora sem utilizarem a palavra “soberania”. Entretanto, nas definições iniciais do conceito, incluindo as de Bodin e de Hobbes, a soberania não se reportava ainda necessariamente a um território específico. O conceito ganhou força na Europa depois da Paz de Vestefália (1648), a qual proibia os estados de interferir em matérias de religião dentro de outros estados, e estabeleceu as bases do moderno sistema internacional, baseado na soberania entre e dentro dos estados. Nos escritos ibéricos anteriores ao século XIX, a palavra “soberania” só muito raramente aparece. Todavia, a palavra “soberano/a” já era usada há muito para descrever a autoridade independente dos monarcas ibéricos face ao Sagrado Imperador Romano. Num sentido diferente, a palavra era também usada para designar o poder supremo dentro de uma esfera de jurisdição particular. Nesse sentido, admitia-se uma pluralidade de soberanias dentro da estrutura jurídica e política do Portugal moderno. Note-se, em todo o caso, que soberania, enquanto conceito político, só entrou em Portugal depois de 1590, na sequência da tradução e adaptação espanhola de Bodin por Añastro. A obra original de Bodin em latim seria entretanto colocada no Índex da Inquisição portuguesa em 1597. Em 1720, Bluteau definia soberania como o poder, supremo e independente de qualquer outro poder humano, exercido pelo príncipe. No seu dicionário jurídico de 1827, Sousa alargou o conceito para enunciar o direito e o imperativo moral do soberano para governar acima de todos os outros poderes dentro do estado.

Se bem que absoluta na teoria, a soberania raramente o era na prática. Mesmo no auge do absolutismo europeu, no século XVII, o poder dos reis, especialmente em Portugal, era muitas vezes difuso e dependia de uma negociação constante com a nobreza e outras elites, sobretudo quando se tratava das prerrogativas jurisdicionais locais ou do apoio financeiro e militar à coroa. À imagem do reino, também nos domínios ultramarinos a soberania da coroa era algo difusa. Fora, quando não dentro, dos limites das grandes capitais coloniais, como Goa ou Salvador da Bahia, a coroa dependia da negociação com as comunidades de colonos ou com os grupos indígenas locais para manter a sua soberania última a partir de um centro remoto. Paradoxalmente, esta estrutura policêntrica e este poder difuso proporcionavam uma flexibilidade que era crucial para a estabilidade global do império. Ainda que o domínio sobre espaços não europeus tenha constituído uma preocupação central da expansão ibérica desde o século XV, como o atestam as Bulas Alexandrinas, os objectivos prioritários e mais imediatos da coroa eram o controlo sobre os seus vassalos ultramarinos, sobre os recursos extraídos da terra, e sobre as rotas comerciais, tanto marítimas como terrestres. O interesse da coroa nos territórios ultramarinos, propriamente ditos, assim como o traçado de fronteiras precisas de soberania territorial, só viriam a ganhar verdadeira importância ao longo dos séculos XVIII e XIX, à medida que os impérios europeus concorrentes se expandiam pelo interior de África, da Ásia e das Américas. [A: Alexander Ponsen, 2015]

Bibliografia: Albuquerque 1978; Benton 2012; Bluteau 1720; Bodin 1576; Cardim et al 2012; Hespanha 1994; Sousa 1827.

doi:10.15847/cehc.edittip.2015v005

Censo consignativo

Embora tenham surgido em meados do século XIII, os censos consignativos, ou compras-vendas a retro, apenas aparecem na literatura jurídica portuguesa nos inícios do século XVI. Tratava-se de contratos de investimento de capital, ou de crédito, camuflados sob a forma de contratos de compra-venda, desse modo contornando as leis da usura. Na prática, os censos consignativos eram contratos nos quais um indivíduo (censuário) vendia a outro (censuísta) um imóvel por determinada soma, ficando o primeiro obrigado a pagar ao segundo uma pensão anual (censo), consignada numa propriedade sua. Em termos jurídicos, e ao contrário dos censos reservativos, estes censos não originavam a transmissão do domínio pleno do imóvel para o censuísta, uma vez que o uso e a posse do mesmo eram conservados pelo censuário, estando apenas em causa a compra/venda de uma pensão anual, assegurada por um imóvel. Ademais, os censos consignativos diferenciavam-se dos simples contratos de compra e venda pelo poder discricionário que o censuário possuía para desfazer o contrato, mediante o ressarcimento do capital mutuado. Tanto as Ordenações Manuelinas (liv. IV, tt. 27) como as Filipinas (liv. IV, tt. 4) consideravam não usurárias as vendas de “alguma raiz sob condição que tornando até dia certo o preço, que por ela recebeu, seja a venda desfeita”. Assim, por assumirem contornos que os aproximavam dos contratos de compra-venda, os censos consignativos não eram regulados pela lei da usura, mas antes pelo “justo preço”. Quanto às taxas praticadas, apenas no século XVII foram regulamentadas (alvará de 13 de Dezembro de 1614), fixadas em 5% para os censos perpétuos a retro, em 10% nos censos em uma vida e em 8,3% nos censos em duas vidas. A extensão do uso desta figura contratual aos espaços ultramarinos está ainda largamente por estudar. Alguns autores, como Bluteau, equipararam estes censos às tangas de cunto usadas em Goa. [A: Lisbeth Rodrigues, 2015]

Bibliografia: Bluteau 1712-1728: VIII, 37; Costa 1961; Lobão 1855; Telles 1815.

doi:10.15847/cehc.edittip.2015v004

Furtado, Francisco Xavier de Mendonça (1701-1769)

Governador do Grão-Pará e Maranhão (1751-1759) e Secretário de Estado da Marinha e Ultramar (1760-1769). Era irmão do marquês de Pombal. Seguindo os passos do pai, militar, ingressou no Regimento da Armada em 1735, e partiu para o Brasil no ano seguinte, numa expedição destinada ao socorro da Colónia do Sacramento. No plano familiar seguiu a disciplina do modelo reprodutivo vincular, como era timbre entre os grupos nobiliárquicos, concorrendo com o essencial do seu património (a comenda de Santa Marinha de Mata de Lobos) para o enriquecimento da Casa que era encabeçada pelo primogénito (Pombal). As fontes descrevem-no como homem justo, porém colérico e intempestivo, atributos que estavam longe de ser recomendáveis num administrador colonial mas que não impediram a sua nomeação para o governo do Estado do Grão-Pará e Maranhão em abril de 1751. A intervenção do irmão, que começava a ganhar ascendente junto de D. José, terá sido decisiva. Indigitado no âmbito de um processo de revitalização e de reordenamento administrativo da região amazónica, Mendonça Furtado viria a ter um papel determinante na política colonial portuguesa da segunda metade de Setecentos. Foi certamente fundamental na dissolução da Companhia de Jesus. A intenção de pôr fim ao “cativeiro indígena”, inserida nas instruções que recebeu em maio de 1751, depressa colheu a oposição dos jesuítas (e de outras ordens), que não queriam abdicar do senhorio universal sobre os índios, que exerciam com total autonomia. Além disso, os inacianos, que controlavam a economia da região, recusavam a submissão ao impulso fiscalista da coroa, assim como reagiam com marcada hostilidade às iniciativas de demarcação dos limites entre a América portuguesa e o império espanhol, acordadas no Tratado de Madrid (1750). Importa destacar que Mendonça Furtado foi igualmente nomeado, “com amplíssimos e ilimitados poderes”, comissário português da expedição que a norte deveria estabelecer a fronteira internacional luso-espanhola na América. A expedição conjunta foi um fracasso mas esteve na origem da criação da capitania de São José do Rio de Negro (1755) para onde Mendonça Furtado se tinha dirigido em 1754. As novidades legislativas promulgadas a partir de 1755 tiveram muito a ver com a ação de um governador que procurava sobretudo consolidar a soberania portuguesa na região amazónica. O Diretório dos Índios (1757), cuja autoria lhe é geralmente atribuída, é um exemplo. Havia que transformar os índios em vassalos, impondo-lhes a língua portuguesa e colocando-os sob administração secular, de forma a justificar a posse das suas terras pela coroa. O inevitável problema da mão-de-obra encontraria solução no quadro da nova Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755), também ela inspirada nas suas recomendações. Simultaneamente, o território, que se tinha tornado o destino de muitas famílias açorianas, foi alvo de intensa municipalização, fundando-se 23 novas vilas, algumas em substituição de aldeamentos previamente controlados pelos jesuítas. Em 1760, pouco depois de ter regressado ao reino, Mendonça Furtado foi nomeado Secretário de Estado, o que constituiu uma importante inovação. Pela primeira vez entregava-se o poder ministerial a um experiente ex-administrador colonial. À frente da pasta da Marinha e Domínios Ultramarino, que deteve até falecer, destacou-se pela tentativa de estender a liberdade dos indígenas à Ásia portuguesa e pelo reforço do dispositivo militar no Amazonas. Esteve ainda por detrás da formação dos Guardas-Marinhas. [A: Miguel Dantas da Cruz, 2015]

Bibliografia: Domingues 2000; Magalhães 2004; Mendonça, 1963; Santos 2008.

doi:10.15847/cehc.edittip.2015v003

Dessai

O título de dessai, ou “senhor da terra”, era atribuído aos chefes locais que controlavam uma parte considerável do território nas províncias das Novas Conquistas, em Goa. O património das linhagens de dessais e sardessais (designação que indicava um dessai de estatuto superior) advinha das funções militares e administrativas que desempenhavam ao serviço do sultanato de Bijapur e, mais tarde, do reino de Sunda e dos Bhonsle de Sawantwadi. Como recompensa destes serviços eram-lhes concedidas diversas mercês, sob a forma de rendas (accas), terras (inamas e mocassós) ou direitos fiscais. Os bens dos dessaiados eram hereditários, ainda que estivessem sujeitos à confirmação do soberano, o que permitiu aos seus titulares alcançar uma autonomia considerável, que se acentuou a partir do final do século XVII com a conquista do sultanato de Bijapur pelo império Mogol. No período conturbado que se seguiu, os dessais adquiriram uma importância crescente enquanto proprietários de terras, em prejuízo das comunidades ou gancarias. Com a incorporação das Novas Conquistas no Estado da Índia estas mercês foram, na sua maioria, confirmadas pela fazenda pública goesa, sendo inclusivamente realizadas novas doações. Todavia, ao longo do século XIX, alguns dessais viram os seus bens reverter para a coroa por ausência de herdeiros legítimos ou por confisco, assistindo-se a uma progressiva erosão do seu património. Este declínio levou à regulamentação do estatuto dos dessaiados, por decreto de 1880, que converteu as suas propriedades fundiárias em prazos fateusins, sujeitos ao pagamento de um foro anual e passíveis de ser divididos ou alienados. [A: José Ferreira, 2015]

Bibliografia: Dalgado 1988; Dias 2004; Gomes 1862; Pereira 1940.

doi:10.15847/cehc.edittip.2015v002