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Limpeza de sangue

A existência de estatutos de limpeza, ou pureza de sangue, nos impérios ibéricos, marcou o quotidiano social, político e até económico das respectivas coroas durante a idade moderna. A adopção de normas restritivas, cuja génese se atribui aos chamados estatutos de Toledo (1449), começou em Portugal em data imprecisa e nunca chegou a ser lei geral, constando na legislação com carácter avulso. Referida nas Ordenações Manuelinas de 1512 (regimento da Casa da Suplicação), a limpeza de sangue foi implementada a partir de diferentes instituições eclesiásticas e seculares. A Inquisição, embora não tenha sido pioneira na sua adopção, tornou-se o tribunal de referência. Tais medidas, vigoraram, particularmente, entre a segunda metade do século XVI e o século XVIII. O mecanismo inibidor (de cariz mais social do que étnico ou religioso) acabou por constituir um meio de controlo com forte impacto no mercado das honras e mercês (concessão de hábitos de ordens militares) e no provimento de cargos e ofícios de governança, justiça e fazenda (v.g. escrivães do juízo, colectores de impostos, juízes, procuradores, vereadores camarários, almotacés, juízes das confiscações). A suspeita de “sangue infecto” (judaico, mourisco ou mulato), na ascendência e parentela dos indivíduos visados, era motivo de exclusão de certas profissões (boticário, médico e outras) e de admissão a organizações confraternais (irmandades e misericórdias) ou familiaturas do Santo Ofício. Igualmente estigmatizados viriam a ser os ciganos e os nativos das conquistas. No âmbito do instituto vincular, os actos restritivos, decorrentes do clausulado imposto por fundadores de morgadios e capelas, tiveram ampla cobertura legislativa e beneficiaram religiosos e laicos, em detrimento de presuntivos herdeiros e sucessores, afastados por motivo de defeito no sangue. Tal exigência afectou ainda a enfiteuse e o arrendamento de terras, que não podiam ser trocadas, partidas, divididas ou alheadas sem licença prévia dos senhorios, que assim estabeleciam, oficiosamente, um controlo social. Já que, nas disposições fixadas pelos próprios intervenientes, em casos conhecidos, os foreiros seriam, obrigatoriamente, cristãos-velhos. Isso dependia da vontade dos instituidores que, na prática, decalcavam procedimentos em uso, ou expectáveis dentro do quadro social dos estatutos de limpeza de sangue. A pressão exercida por alegados herdeiros levou a que muitos recorressem ao Santo Ofício no intuito de dirimir questões de posse e sucessão. Isso contribuiria para, com cobertura legal, “expropriar” terras de parentelas rivais e pressionar partilhas litigiosas de bens.

O decalque de todo este tipo de procedimentos fez-se sentir, de modo matizado e incongruente, dada a crescente miscigenação, nos espaços ultramarinos portugueses, do Brasil a África e à Ásia, incluindo a Índia. Ali, o sistema de castas poderia ter algumas afinidades com os modelos e práticas sociais de Antigo Regime vigentes na metrópole, entre eles a adopção do instituto vincular. Este último possibilitou, através de um sistema de morgadio em tudo semelhante ao praticado na metrópole, que a nobreza pré-europeia (brâmanes e chardós) transmitisse apelidos e bens de primogénito em primogénito, além de lhe garantir a posse fundiária de terras e prazos. Não se tratava de uma obrigatoriedade legal mas de disposições particulares. Brâmanes e chardós eram considerados limpos de sangue, por não se misturarem com pessoas de nação “infecta”. As leis pombalinas de protecção/dignificação dos naturais das conquistas vieram contrariar disposições e práticas restritivas aí existentes, até que, em 1773, a distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos foi oficialmente extinta em todo o império. [A: João Figueirôa Rêgo, 2015]

Bibliografia: Beja 2004; Figueirôa-Rêgo 2011; Figueirôa-Rêgo e Olival 2011; Olival 2004.

doi:10.15847/cehc.edittip.2015v015